Esqueletos debaixo da cama
Rodrigo G. GomesO que torna difícil de deixar ir o passado é o facto de que o passado é a base de quem somos agora. Todas as crenças e perspetivas ou perceções, todos os mecanismos de defesa e métodos de lidar com emoções e sentimentos, todos os enigmas que resolvemos cada vez que nos vemos obrigados a compactuar com algum pensamento (nem que isso signifique o esforço de rejeitar ou ignorar esse pensamento): a base de um ser que, se destruída, pode facilmente levá-lo à loucura.
Olhando para trás, o passado é algo que pura e simplesmente aconteceu e é humanamente impossível de mudar. O que pode ser, por si só, aterrorizante. As cicatrizes criadas lá continuam a existir agora, mesmo que já não se sinta dor.
Muitas vezes, espera-se o mesmo de alguém magoado que se espera de alguém que não está magoado. A vida acontece e o tempo passa para ambos, claro, mas não se trata propriamente da mesma realidade. Nós somos apenas crianças que cresceram e que, de repente, sentiram a necessidade de levar tudo a sério (incluindo a si mesmas) num mundo formal e profissional de adultos engravatados que carregam documentos importantes numa maleta.
Acredito que é a nossa responsabilidade aprender a lidar com a vida (e a nossa realidade) e com quem nós somos sem que isso afete outros que podem, com a mesma facilidade, estar a enfrentar uma batalha parecida. O meu passado não deve servir de base para a forma como trato os outros. Os meus problemas não são mais importantes do que os problemas dos outros. São os meus problemas e sou eu quem deve procurar soluções. Claro que eu continuo a ser igualmente capaz de ser um completo idiota, mas que pelo menos não seja por mera intitulação.
Mas também acredito que o passado é algo que pura e simplesmente aconteceu e é humanamente impossível de mudar. Eu não consigo ser quem eu não sou. O que não deve servir de base ou motivo para fazer de mim alguém menos digno de ser amado. O verdadeiro desafio é encontrar o equilíbrio nisso: eu sou quem eu sou, mas não sou quem tem os problemas que merecem toda a atenção.
Muitas vezes, espera-se uma norma dentro de um relacionamento que pode ser basicamente irrealista e até injusta. Acredito que, apesar da responsabilidade ser do próprio, se uma pessoa aceita compartilhar a vida com outra, deve estar pronta a assumir tudo o que isso implica. Eu nem sempre me sinto seguro e tenho motivo para isso. Tu tens os teus limites e motivos para tal. Então, de onde veio a crença de que não temos obrigação de aprender a lidar e lidar um com o outro se nos escolhemos um ao outro? Nós somos dois, um mais um, ou somos um e outro?
O meu passado, a minha infância, não vai mudar, tudo o que eu posso fazer é aprender a lidar com ele da melhor forma que consigo. Mas, então, estás disposta a aprender a lidar comigo se eu estou? Estás disposta a aprender a lidar com isso se eu estou? Estás disposta a abrir mão de coisas, hábitos ou atitudes? A ouvir se consigo falar? A entender? A construir? A construir confiança que não só não é uma escolha como é difícil de só existir desde início? A ter um compromisso comigo que envolve comprometer? A permitir que isso faça parte da nossa realidade? Estás disposta a ter esse esqueleto, que efetivamente existe, debaixo da nossa cama? A aceitar que eu tive uma infância como tu que pode não ter sido como a tua, e nenhuma pode mudar? Estás disposta a tornar tudo melhor, em vez de pior, e a não ir embora quando complica só porque complica? Estás disposta a tudo isso, se eu estou por ti?