O novo mundo

Rodrigo G. Gomes

Nós fomos de marcar momentos com fotografias para fingir que vivemos momentos com todo o tipo de formato de conteúdo. A nossa vida passou a ser “online”, agora a realidade é a própria foto, não foi o momento no qual a foto foi tirada. É basicamente impossível começar qualquer projeto sem ter de estar online e sem ter de ter a atenção de "toda a gente" online. Se nós já antes fingíamos ser o que não éramos por mero estatuto, o que nós fazemos agora é mentir até para nós mesmos.

Diria que o problema está na desconexão que vamos criando entre nós, e quando digo isto não é no sentido de literalmente estarmos fisicamente próximos, mas no sentido de deixarmos de ver pessoas como humanos e passarmos a ver pessoas só como um rosto bonito ou feio (e é isso que estabelece, aparentemente, muito do valor e da identidade ou personalidade de alguém) e um nome online cujos valores ou crenças são preto ou são branco.

Reparei que existe menor probabilidade de ser ignorado se a mensagem que eu enviar for um áudio em vez de algo escrito. Dá-me a sensação que é porque um áudio é a voz de uma pessoa, de um humano que está do outro lado a expressar-se como sabe e com base em quem é, e não são só palavras num ecrã.

O que faz de inteligência artificial algo ainda mais assustador, porque agora aparentemente eu consigo criar áudios com inteligência artificial com base na minha voz, o que fica extremamente realista.

Aquilo que chamamos de redes sociais na verdade são para tudo menos socializar, são estranhas as mensagens de estranhos como é um estranho bater à nossa porta ao ponto de ser basicamente preciso ser aceite um convite primeiramente para que sequer haja conversa. Redes sociais tornaram-se um parque onde vendedores vendem (ou tentam), religiosos praticam rituais de acasalamento onde sexo é deus com todos os respetivos jogos (incluindo aquele do "quem é que se importa menos, mas quem é que fode mais", gosto desse particularmente... sexo como forma de validação), apenas amigos dos mais aos menos convenientes convivem até deixarem de ser amigos, descendentes de reis criticam os sem-abrigo por não terem casa e todos tentam ter a sua dose diária de aprovação.

Então agora o mundo é o mundo online e quem não está online é como se não existisse. O que acontece é que, naturalmente, o mundo gira, as coisas mudam, o tempo avança e o estado atual do mundo vai atualizando. Agora os novos adolescentes têm todos um estilo visual diferente de todos os adolescentes da altura em que eu era adolescente. Agora usam-se expressões que antes não se usavam, agora valorizam-se coisas que antes não eram vistas como importantes e agora já não se valorizam valores que antes eram essenciais.

O que acontece é que crenças e valores parecem ser apenas um produto do estado atual do mundo. Seja a nível político ou social, até porque tudo, no fundo, acontece dentro deste nosso mundo (ou pelo menos aquilo que é suposto saber-se). Por exemplo, valores tradicionais de família perdem-se quando a maioria deixa de os valorizar. Então, eu questiono: esses valores foram, de todo, valores alguma vez? Ou apenas um reflexo do estado atual do mundo?

Hoje, nós não valorizamos valores tradicionais de família, talvez amanhã passemos a valorizar, mas o que é que acontece no dia a seguir? Como é que se confia no que é apenas um estado se um estado pode facilmente mudar simplesmente por ser influenciado a mudar? E com a facilidade com que é influenciado a mudar.

Isto porque o que toda a gente sabe é com base em informação online, sem sequer considerar que é o objetivo de um algoritmo alimentar apenas o conteúdo que uma bolha consome. O que por sua vez faz com que uma pessoa tenha toda a evidência do mundo que confirma aquilo que já acredita.

Poderá ser essa a melhor forma de dividir a espécie: criar dois grupos e dar-lhes ideias opostas e toda a evidência que dá suporte a essa ideia, e assim deixar ambos os grupos igualmente 100% convencidos de ideias opostas. Como é que se sai de um impasse destes? Como é que nos mantemos humanos com um coração e um cérebro quando é uma máquina que define o que sentimos, pensamos e sabemos?

Até porque aparentemente dizer coisas nem sempre é permitido. O algoritmo não deixa, de repente tenho de ir para um lugar diferente para poder falar abertamente. E não só o algoritmo, mas as próprias cabeças de dentro de uma bolha que não têm a capacidade de lidar com uma perspetiva diferente.

Gosto imenso de partilhar estes textos contigo aqui, sinto que, pelo menos, é uma conversa em vez de só mais um pedaço de conteúdo perdido algures. Se calhar estou a ficar velho antes do tempo, mas a verdade é que me é muito mais entusiasmante escrever algo para te enviar ou mostrar diretamente do que “criar conteúdo” para as redes sociais. Acho que existem demasiadas plataformas e nenhuma parece conseguir preencher o vazio da solidão. É sempre bom lembrar que ainda somos gente.

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